sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Scottwool

Naqueles tempos a Figueira da Foz era diferente. Tinha muito menos avenidas, muito menos gente. Tinha os pescadores, o mar muito mais próximo. No cimo da serra, o farol imponente, incansável, a dizer à gente que há sempre uma luz para nos guiar na noite escura. E o rio a beijar inevitavelmente o mar na foz.
E a vida andava. A gente trabalhava, a gente ganhava o nosso salário ao fim do mês e a gente esforçava-se para fazer render: comida na mesa, filhos na escola. Que um dia haviam de ser doutores e levar uma vida melhor. O meu marido voltava do mar, o barco carregado de peixe. Na lota o vendia todo, que o peixe português era tão bom como os outros. Muitas vezes na tasca da esquina lá se ia uma parte do pescado convertido em vinho tinto e muitas histórias de pescador e de mar.
Eu cuidava dos filhos e da casa, e fazia turnos na fábrica, junto ao rio. Voltava da fábrica, dos fios, dos teares, da tagarelice das colegas, do pó de lã, das noites sem dormir, para casa. Onde encontrava os meus filhos, lhes perguntava como tinha sido a escola, ou lhes dava o pequeno-almoço com um beijo de bons dias. E valia a pena. Valia a pena mesmo quando encontrava o meu marido cansado do mar e das redes e das ondas e bêbado de sono e do tinto das histórias da tasca. Mesmo quando, sem dormir e doente, à noite grelhava o peixe e cozia as batatas para a família jantar.
Ia então para a cama e o meu marido dava-me um beijo terno como o rio a beijar o mar, e eu dormia descansada, com a sensação de que mais um dia tinha passado à luz do farol no alto da serra.
E depois voltava à fábrica. Mais um turno de doze horas, tagarelar com as colegas do lado, o patrão aos gritos que falássemos menos e trabalhássemos mais, nós a construir camisolas com os nossos dedos hábeis e cegos, a gente podia perfeitamente trabalhar e falar ao mesmo tempo. Mas ao patrão irritava-o a nossa tagarelice. A nós irritava-nos o patrão, e que ele ficasse lá do alto da plataforma do escritório aos berros, completamente ignorante das máquinas, dos fios, da tecelagem, do pó de lã, dos nossos dedos hábeis e cegos, da nossa necessidade de conversar, de nós. Irritava-nos o patrão mais os seus berros e mais a sua ignorância e mais a sua mesquinhez, que a gente é que trabalhava e ele é que berrava. Os nossos dedos, máquinas a manejar teares, a construir camisolas que alguém havia de comprar com metade do nosso salário. E a gente ali, a tecer com fios de suor e sofrimento as malhas das nossas vidas, tantas vezes desfiadas nos fusos dos desenganos. Fios de suor e desenganos, eram rios que iam e vinham, afluentes do rio maior que era a nossa vida, beijando renovadamente a imensidão do mar da nossa existência. E o patrão um fio, a berrar que trabalhássemos mais e falássemos menos. E a gente sempre a esticar o fio do salário, para ver se chegava ao fim do mês. E tantas vezes o fio foi curto.
E a gente via as notícias na televisão, mais mortos, mais famílias desalojadas, mais fábricas que fechavam e trabalhadores desempregados. Trabalhadores como eu, que tinham dado as suas vidas a um patrão que agora lhes virava as costas, que tinham pago os seus impostos a um governo que agora lhes fechava os olhos. Ao menos a gente tinha um emprego, ao menos a gente tinha comida na mesa e os filhos na escola. A gente sempre ia sorrindo e dizendo que tinha sorte.
Hoje a Figueira da Foz está diferente. Há muitas avenidas novas, muita gente. Ainda há os pescadores, mas o mar está mais longe e mais revolto. Hoje fecharam a fábrica junto ao rio. Hoje há mais uma centena de nós no desespero de um amanhã sem futuro. Continua igual o patrão a virar as costas, o governo a fechar os olhos e mais uma notícia na televisão. Continua lá, no alto da serra, o farol, mas já não lhe vejo a luz. E olhando melhor, julgo que já nem o rio beija o mar com a ternura de antes.
2005