quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Sacudindo nuvens

Ela vinha cheia de perguntas. Ela era uma pergunta. Um mistério.
Perguntou-me o que eu queria. Porque estava ali, à frente dela, porque a convidara. Imaginei que ela esperava um beijo que não dei. O que pensaria ela? Que nuvens quereria alcançar?

Ela remexia nas carteiras há muito arrumadas no armário, tirava os papéis de há um, dois, três anos. Deitar fora o velho para deixar entrar o novo, pensava. Ela acreditava no Feng Shui. Olhava de vez em quando pela janela fria: nem uma nuvem.
Ouvia um "bip":  corria para o telefone, mas não era ele. Ele nunca perguntava nada, não precisava de explicações, ele ainda não tinha olhado nos olhos dela, não a tinha beijado. O que quereria ele? Não sabia que se pode alcançar nuvens?

Ela esperava mais de mim do que eu podia dar; ela queria romance, uma aventura, um beijo, um olhos nos olhos e não falar, ela queria saber o porquê de tudo. Eu, eu julgo que compreendia, eu sabia o que ela gostaria de ouvir. Eu queria dizer, juro que queria, e no entanto só me saíam da boca chorrilhos de baboseiras. Ah, eu gostava daquele jogo. E tinha medo. (ela havia de perguntar: medo de quê? E nem eu sabia). Olhava pela janela: uma nuvem, uma única nuvem riscava o céu de um lado ao outro e lembrava-me dela. Não lhe telefonei. Nem uma mensagem.

Ele estava longe e não lhe telefonou. Ela continuava num frenesim de arrumação. Decidiu que se aquilo era um jogo, ela não jogaria. Preferia perder; perderia? Ela arrumava o seu coração desarrumado (para onde vai o coração quando decidimos não jogar?), enquanto colocava em caixas de plástico novas a roupa antiga de verão. Estava frio. Em breve viriam as nuvens. Em cima da cómoda, uma única fotografia a preto e branco dela, a rir. Não, a sorrir. Por trás do sorriso um por-do-sol laranja a devorar o mar. Ah, quando navegava quase tocava nas nuvens. Teria que voltar ao mar. Qual a explicação dos pássaros?
A fotografia tinha quatro anos. Ela tinha ido ao espelho arranjar-se para sair. Já não era a mulher da foto, e no entanto, ao olhar-se, pareceu-lhe ver alguém vagamente parecido com ela. Com a ponta do tubo de creme anti-rugas, colocou delicadamente várias pintinhas por baixo dos olhos. Pensava sempre nele ao colocar pintinhas de creme. Espalhou as pintinhas com o sorriso da foto - os olhos haviam de ficar também iguais aos daquela mulher que começava a reconhecer. Foi uma vez mais à janela: cirros brancos pareciam chamá-la. Não olhou para o telefone nem foi a correr ao computador antes de sair, decidida, para a rua.

Passaram vários dias. Não voltámos a falar .Gosto deste jogo. Ela deve estar a gostar também, porque não voltou a escrever-me no computador. Nem uma mensagem no telefone. No fim de semana telefono-lhe.

Este fim de semana o céu está cheio de nuvens. Daquelas compridas, parecem vermes a lixar o meu dia, logo hoje que ia telefonar-lhe, que lhe ia perguntar se queria ir passear, aproveitar o sol. Como se sacodem nuvens? Qual a explicação dos pássaros?

Ela saiu decidida para a rua. Sabia da arte de alcançar nuvens. Sabia dos pássaros. Foi tirar fotografias.

Susana Faria

Nota: Agradeço a Helena Terra a ideia da arte de alcançar nuvens. As nuvens são dela.

domingo, 3 de novembro de 2013

O jogo

Disse-te que escrevia no meu avião de papel. Que já tinha decidido há muito, afinal, o que pensava que iria descobrir. Tinhas razão

- Parece-me que o que estava escrito no avião de papel será algo que tu decidirás e não que descobrirás.

Sei que sim, sei que já descobri. Que muito pode ser uma vida ou uma hora. Ou um minuto. Penso que decidi num minuto ao perguntares

- O que escreverias?

E no entanto, tanto tempo para descobrir. Já me disseste que, uma vez tomada uma decisão

- quando tomo uma decisão

ages rapidamente, porque não há volta a dar

- não há nada a fazer, se tem que ser...

Está frio. Detesto o Inverno. E detesto domingos sem o mar. Tu sabes. Conheces-me de algum lado, não é?
Algures há uma pista aberta à espera de um avião de papel.

Ping Pong. Adoro mantas. Gosto das pernas

quatro

debaixo das mantas. Da distância das pernas. Do leve tocar. Falar sem quase olhar. Olhar e não estares a olhar. Imagino que estejas a olhar quando eu não. E sem dizer nada, as pernas:

- chega-te um pouco mais

os cotovelos:

- estou a incomodar? desculpa, chego-me para lá?

e os cotovelos

- não, estou bem. Aliás, deixa-te estar.

O silêncio é muito confortável quando as pernas e os cotovelos falam. É um jogo. Somos ambos ardilosos. Ou melhor, algumas partes do nosso corpo são

ardilosas

O avião de papel caiu e ficou por ler. Ou ficou alguma coisa por escrever?

- O que escreverias?

Escreveria que detesto o Inverno, mas adoro as mantas e as pernas

quatro

debaixo das mantas.

Ping.