sexta-feira, 13 de maio de 2016

Até que sejas noite

Cheguei num avião poeirento, aborrecida e cheia de sono.
Esperavas-me. Eu não te conhecia, mas reconheci-te assim que te vi.
O meu colar de contas em código morse dizia: "you had me at hello".
"You had me at the first smile", pensei, e o sono foi-se, o rosto iluminou-se e achei

achei mesmo

que, se calhar, já te conhecia há muito tempo. Ou apenas estava à tua espera:
tu esperavas-me no terminal e eu esperava-te lá onde a vista não alcança, onde as nuvens não chegam e tudo se parece com o que é.

Fomos a casa por as malas e eu achei que ficaríamos por ali (tinham-me dito que Luanda está um perigo), mas a casa era de homem solteiro - chamaste-me guerreira por aceitar isso tão bem, o rolo de cozinha no quarto de banho, o frigorífico vazio (havia chocolate, e os iogurtes fora de prazo), as roupas espalhadas pelo quarto, as camas por fazer, as máquinas por toda a sala, o cinzeiro que era um pacote de sumo de manga - de modo que resolvemos sair para almoçar, matar a fome e a saudade do que não conhecia.

É muito provável que eu não volte a ser a mesma depois desse almoço na Ilha, é muito provável que acredite em coisas antes impossíveis de imaginar, é muito provável que sofra bastante e que me saiba bem essa dor, é muito provável que, daqui para a frente, a esperança na humanidade se renove e o amor tenha mais crédito.

"Estou aqui para tomar conta de ti, não tens que te preocupar com nada". Mordeste um pedaço de mim, não sei qual, porque me ia desfazendo a cada sorriso, a cada palavra que trocávamos (disparávamos com uma vontade que se ansiava certeira, cada qual com as suas armas), eu inteira (singularity), mas aos pedaços que ia

   tentando

                apanhar

             pelo

caminho das palavras e dos olhares cheios de vontade de tanta coisa, das ondas cerebrais e dos multiversos, músicas, binaural beats, frequências

hertz

que me soavam todas lá no fundo e se colavam como a gravidade puxa tudo para si,

irremediavelmente.

A parte que mordeste ficou em Luanda e quero ver se um dia vou aí buscá-la. Em alternativa a essa possibilidade (Heisenberg percebia isso) posso tentar viver sem esse pedaço ou ainda, como num procedimento estético, por um botox etéreo no coração (o coração regenera-se por si?) e esperar que, um dia, esse dia em Luanda tenha sido um sonho em que te guardo esperando

até que sejas noite e te possa sonhar outra vez.