quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Tu, à lareira

- Porque será que as pessoas ficam, que tempos, a olhar para a lareira?
perguntaste-me tu, um frio de cortar à faca lá fora, nós os dois à lareira a olharmos para o fogo num bailado lento de cabelos ao vento, as chamas a crepitar em estalinhos de carnaval e eu encolhi os ombros num gesto vago e, de olhos postos nas chamas, respondi
- Não sei...
Isto porque a primeira justificação lógica que se me afigurou foi que as pessoas ficam que tempos a olhar para o fogo na lareira porque é muito mais fácil do que olharem umas para as outras. Porque, com a desculpa de que é habitual estar-se à lareira em silêncio, as pessoas não precisam, sequer, de se chatear a ter que conversar umas com as outras.
E quase me saiu da boca para fora este chorrilho de baboseiras que, depois ao olhar para ti ali, não faziam, afinal, sentido nenhum, e por isso preferi encolher os ombros num gesto vago.
Como eu dizia, olhei para ti. Vi nos teus olhos o reflexo dos meus à luz do fogo e tive certeza absoluta de que estávamos ali os dois calados porque às vezes, simplesmente não precisamos de falar. Às vezes sabe bem o silêncio a dois. Alguém me disse um dia que é bom sinal quando o silêncio entre duas pessoas deixa de causar desconforto. Como quando passamos horas calados a olhar para o mar. Porque será que as pessoas ficam que tempos a olhar para o mar? Eu acho que é porque o mar nos diz tudo e diante da sua grandeza a nossa pequenez revela-se ainda mais. É como eu ficar estarrecida a olhar para um céu de verão, ou pasmar-me de cada vez que sinto o cheiro da terra molhada depois da chuva. É o mundo à nossa volta, é a vida a revelar-se em cada manifestação dos elementos. Que podemos nós dizer perante tanta beleza? Que bela fuga à realidade. E então, antes de regressarmos ao dia-a-dia, ao trânsito, à política, à injustiça, às contas, absorvemos aquele silêncio em silêncio, damos um mergulho na água gelada que nos purifica, enchemos os pulmões de ar fresco, afirmamos que a vida é bonita mesmo assim e, renovados, rezamos para que o tempo passe depressa para podermos fugir-lhe outra vez na próxima oportunidade.
De modo que estava eu ali contigo à lareira numa noite gelada de Inverno, como podia estar contigo a contemplar um por do sol no mar a sorrir, a olhar para ti e a sorrir, os nossos olhos inevitavelmente a trair os nossos pensamentos, de modo que, conhecendo-nos assim tão bem, não precisaríamos de dizer uma única palavra, que bons entendedores que nós somos!
Ao perguntares-me
- Porque será que as pessoas ficam, que tempos, a olhar para a lareira?
encolhi os ombros e olhei mais concentrada para o fogo, a pensar que uma lareira é como a vida: mantê-la acesa requer sabedoria, atenção permanente, precisa que a gente a alimente constantemente com troncos de alegria e bom senso, que saiba fazer com que as brasas, restos acesos do que passou, ajudem a manter a chama do presente.
E ali estávamos nós, a vida e a lareira muito acesas, e como disse, olhei para ti. Que poderia eu dizer perante tanta beleza? Que bela fuga à realidade. E ao olhar melhor, afinal, que bela realidade estava mesmo diante dos meus olhos à luz do fogo. Palavras para quê?

5 comentários:

  1. Na minha lareira, encontro sempre um início do que ainda está por começar, como se fossem os gravetos e as toras de lenha os núcleos do afeto e de um outro mundo que desejo. E na minha lareira também percebo que as chamas são as únicas criaturas que sabem dançar um silêncio precioso e secreto que guardo em mim.
    Gostei muito do seu post, SF. Já tinha visto um texto seu em um dos blogs do seu pai, o Dr.Bitacia :) Ele é um mimo, mas como anda atravessado! Você escreve muitíssimo bem e bonito.
    beijo.
    BF
    Bem-vinda ao mundo dos blogs!

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  2. Surpresa.
    Olhar para o fogo, é um ritual antigo, ancestral que nos diz que um dia há muito tempo nós conseguimos dominá-lo e crescemos com isso.
    Provávelmente está no nosso genoma.
    Estou de acordo. Quando posso sem ser rude, ficar em silêncio com outra pessoa isso significa que gosto muito dela e, que tudo já foi dito. Palavras para quê!

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  3. BF registei o comentário e o apelido.
    A gente se encontra nas curvas deste caminho longo.
    Bjs
    GED

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  4. SF
    Um belo texto-com magníficas imagens e reflexões.

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  5. Coisa interessante a língua portuguesa. Hoje li, em um blog de uma amiga de Lisboa, a palavra registei sem o r; agora, a vejo de novo aqui nas palavras do Dr.Bitacaia, digo, estimado GED :)
    Registei, no Brasil, é algo impensável. Essa nossa língua é e não é a mesma.
    bjs.
    BF

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