terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Riscos

Amor, pára com isso. Que criancice, agora deu-te para aí. Que história é essa de desatares numa sangria desenfreada a esvaziar gavetas, a revolver armários, a procurar malas que não usamos há séculos, a tirar livros cheios de pó das prateleiras, a olhares com essa cara para os CDs, olha que muitos são meus e nunca gostaste deles, a desmembrar assim a nossa casa? Nunca mais te chamei amor? Ainda agora te chamei amor, não inventes. Sempre te chamei amor. Está bem, é verdade, no outro dia, sem querer, chamei amor à Elsa, mas foi sem querer, juro, é do hábito, ainda por cima sabes muito bem que simpatizo com ela. E como vês, é como te disse, do hábito, mais uma prova, vês, de que estou sempre a chamar-te amor.
Mas que raio de ideia a tua, essa de saíres de casa assim de repente. O que é que estás a fazer na casa de banho? A casa de banho é que não senhor. Não há aí nada para levares. Maquilhagem, sim senhor, até está bem, mas também não percebo porquê, não usas nada disso há que tempos. Tens andado, por acaso agora que penso nisso, pálida como tudo e nem assim. Mas não leves mais nada, porque sabes muito bem que nunca tive tempo nem paciência para ir às compras, e agora com esta confusão toda que estás a causar, ainda menos.
E olha que ainda estou parvo. Já nos chateámos tantas vezes, sempre fizemos as pazes, sempre reconheceste a tua culpa, sempre me pediste desculpa e tantas vezes disseste que tudo farias para eu não me chatear mais contigo. É claro que me passou pela cabeça sair de casa nessas alturas, mas saí? Saí? Não, pois não? Aguentei-me contigo, afinal de contas foi contigo que eu casei, não foi? Não me olhes com essa cara, nunca te vi essa cara antes. Diferente, eu? Ai agora estamos os dois diferentes, é? Não senhora, não me parece nada que eu tenha mudado. Já tu...
Pois muito bem, sais assim. A mim parece-me mais um sinal de fraqueza tua. Forte, dizes tu? Que tiveste que ser muito forte para tomar essa decisão? Pois sim, se fugires assim é seres forte, então vou ali e já venho. Não fales assim comigo. Onde já se viu responder-me? Ainda por cima: "Vai ali mas não voltes"? Queres saber o que é ser forte? Eu fui forte, toda a vida contigo. Vê lá se não me atirei àquele anormal que se meteu contigo daquela vez. Vê lá se não carreguei os sacos das compras do elevador para a cozinha sempre que voltavas do supermercado para não te sobrecarregar. E o que eu te aturei, senhores, o que eu te aturei sem me dar na veneta de sair de casa. Se isso não é ser forte, não sei o que é. Sim, é verdade que aquela vez em que te defendi do anormal já foi há não sei quantos anos. Até pode ser verdade que já não saímos um bocadinho os dois há que tempos. Mas caramba, alguém tem que trabalhar a sério para teres a vida que tens. Até te disse que nem precisavas de trabalhar, mas insististe e eu lá condescendi, já nem te podia ouvir. Assim, quem é que tem tempo ou vontade de sair? O quê? Ainda ontem fui jantar fora, mas foi um jantar de trabalho, garanto-te. É claro, sabes perfeitamente, essas coisas às vezes são demoradas e depois temos que fazer uns fretes para agradar os chefes e enfim, sabes como é.
Quer dizer que está decidido, não é? Vais sair assim, sem mais nem menos. Mas porquê? É isso que não percebo. Que te tenhas passado com a marca de baton no meu colarinho, que te tenha dado um repente, até aceito, ninguém é perfeito, és uma dona de casa exemplar mas realmente ninguém é perfeito. Agora que saias mesmo? Amor, sei que já tens as malas à porta e o resto todo encaixotado e tudo, mas tem mesmo que ser assim? Bem, eu chamo-te amor quando eu quiser! Já chegou o elevador. Desta vez não te ajudo, que raiva. Vais sair de casa, vais-me deixar e agora quem me ouve a resmungar, quem me faz o jantar, quem me trata das papeladas, quem me diz bom dia de manhã com sumo natural de laranja, quem faz as compras, quem vai pôr música a tocar na aparelhagem, quem?
Espera. Deixa-me olhar melhor para ti. Estás tão bonita hoje. Pintaste os olhos, não foi? E puseste uma corzinha nas bochechas. Olha que se saíres mesmo arriscas-te. Juro que te arriscas. Se me deixares assim, com essa força, com essa determinação, juro que te arriscas, amor, a ser muito feliz.

2 comentários:

  1. E já diz o velho ditado que quem não arrisca não petisca :)
    Adorei o conto. O ritmo é tão intenso que dá para ouvir os corações batendo!
    Beijos grande.

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  2. Quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto (assim diz o ditado),aqui gosto do ponto final.
    Pequeno forte decidido. É tudo o que é preciso num ponto final. depois? depois isso já pertence a outra história.

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